domingo, 13 de fevereiro de 2011

Escolha a Mesa do Canto Chame o Garçom e Peça Cachaça e um Copo

Essencial é que haja uma garrafa de cachaça
e um copo.
Não importa o tamanho do copo;
importa é que as doses sejam pequenas
e que não sejam viradas de uma só vez.
Devem ser degustadas,
como quem toma um café bem quente,
mas a espaços bem maiores.
Devagar e deliciosamente.

Depois é conversar com o copo,
num diálogo em que ele só responderá com o silêncio,
que é sempre a melhor das réplicas.
Dizer ao copo tudo o que a alma se recusa a revelar a
qualquer ser vivente.

Fazer-lhe confissões,
como amigo e conselheiro, dizer-lhe das ilusões e desilusões,
dos erros e acertos.
Não esperar por perguntas para responder
nem fazer perguntas que o silêncio não possa responder.
O copo é bom ouvinte, sabe conversar.
Soltar as amarras como quem bebe.
Devagar e deliciosamente.
Degustando as palavras como quem toma uma cachaça,
como quem sorve um café bem quente,
mas a espaços maiores, para saborear bem o que vai
sendo dito.

Não importa o que deve ser dito,
importa é que o seja com espontaneidade,
com sinceridade.
Com limpeza.
Higienicamente,
porque a alma é pura, os preconceitos do mundo não
a poderão jamais sujar.
Do mundo imundo, não do mundo mundo.
Falar devagar, com pausas educadas para ouvir, também,
a silenciosa resposta do copo.

Amigo, confidente e conselheiro, ele sabe o que deve falar.
Enchê-lo de cachaça e confidências.
Esvaziá-lo de cachaça
e enchê-lo mais ainda de confidências.
Esvaziar-se.
Não há limites para o copo,
nele cabem todas as confidências.
Há limite para a cachaça que ele deve conter.
Doses pequenas,
para não serem viradas de uma só vez.

Até que a garrafa se esvazie
e já não haja confidências mais para fazer.
Até que o copo se esvazie
da última gota da bebida
e tenha ouvido a última palavra de confidência.

Então o copo deve ser quebrado
e jogado fora.
Ele sabe demais.

Anatole Ramos
Cinco de Março, 15/01/1973